Thursday, January 11, 2007

o personagem

A primeira vez que o vemos (e afinal a única) é logo após o genérico, logo na primeira cena, está ele em grande plano, de costas para a câmara, com um casaco grosso de gola levantada e o cabelo em desalinho. Passam-se uns largos segundos, talvez um minuto, talvez mais, sem que alguma coisa aconteça. Não há o mais pequeno movimento, nem um som sequer, e só quando se vêem umas pessoas a cruzarem a rua lá ao fundo, se ouve de repente um grito: Corta! que provoca um sobressalto na sala, e umas quantas gargalhadas. Mas o que é isto, foda-se? O que é que anda aquela gente ali a fazer? ...vamos ter que repetir tudo outra vez. Atenção, silêncio... claquette. E entra a correr um tipo pequenino que pára em frente do actor, virado para a câmara, grita umas coisas para o ar e depois bate com a claquette e sai a correr por onde veio. Ouve-se então de novo a voz, meio chateada. Acção! E o actor, finalmente, mexe-se. Roda a cabeça para um dos lados da rua, depois para o outro... olha, mas não se decide a fazer mais nada e acaba tudo como estava, na mesma. Corta, foda-se! Corta-me esta merda! E entrando em campo, aparece ao fundo da rua o dono daquela voz. De chapéu e charuto na mão, a esbracejar e a gritar daquela maneira, devia ser o realizador. Corta-me esta merda! E vem direito ao actor que continuava quieto e de costas no ecran, mas foi a última coisa que se viu, antes do ecran ficar completamente negro. Felizmente o técnico de som, ou porque era surdo, ou por outra razão qualquer, não desligou o gravador, porque se ouve perfeitamente o realizador, assim que chega à frente do actor...

Wednesday, January 03, 2007

(um texto de Domingos Amaral)

«Desde Miguel Sousa Tavares aos Gatos Fedorentos, desde Dias Ferreira às revistas popularuchas de televisão como a TV 7 Dias, o ataque a Carolina Salgado foi avassalador. Mal se soube que a senhora tinha escrito um livro onde contava pormenores sobre a vida com Pinto da Costa e revelava alguns dos métodos do presidente do FC Porto para atingir os seus objectivos, o coro de protestos foi imenso. O tom de superioridade moral da maioria foi espantoso: para quase todos, tratava-se de uma senhora reles, sem carácter, duvidosa. Numa palavra, tratava-se de um alvo a abater, e depressa. A tentativa de assassinato de carácter que toda esta gente fez a Carolina Salgado é reveladora, não só dos instintos machistas grosseiros e boçais que ainda prevalecem por cá, como dos instintos de classe.

Carolina Salgado não é uma menina bem, não vem de boas famílias, cometeu muitos erros na vida, comeu o pão que o diabo amassou, deixou-se usar numa guerra suja, meteu a mão na anca quando foi preciso e sujou as mãos quando lhe pediram. Sim, é tudo verdade, e também trabalhou como alternadeira, no Calor da Noite. Porém, isso não a diminui aos olhos do mundo, não lhe retira força. Bem pelo contrário. A vontade expressa de a enxovalharem, de a vilependiarem, é apenas uma estratégia, reveladora de um preconceito fortíssimo, um preconceito vil e ignóbil, daqueles que se julgam virtuosos. É tão fácil atirar-lhe pedras, cuspir-lhe na reputação. Tal como muitos chamaram às vítimas do processo Casa Pia prostitutos e mentirosos, agora também chamam a Carolina tudo e mais alguma coisa. É preciso diminuí-la, desgastá-la, descredibilizá-la. A defesa de Pinto da Costa já começou, e os seus lacaios fazem-lhe o servicinho, tendo por isso como aliados os idiotas úteis do costume. É preciso baralhar o povo, confundir as pessoas, para os imorais triunfarem.

Mas, convém ter bem a noção do que se está a passar. Pela primeira vez em vinte e tal anos, houve um terramoto no Porto. Sim, um terramoto de grau muito elevado. As coisas que Carolina revela, e a coragem com que o faz, são terríveis, e mostram que tudo o que se suspeitava pode bem ser verdade. Aqui há uns anos, quando José Mourinho regressou ao Porto, já como treinador do Chelsea, levou seguranças, e perguntaram-lhe porque o fazia. Ele respondeu: "quando vou a Palermo, tem de ser assim". Palermo... Palermo é a capital da Sicília, terra da Mafia, da Cosa Nostra. José Mourinho tinha sido treinador do FC Porto, onde tinha vencido uma taça UEFA e uma Liga dos Campeões. Sabia do que falava. Ele vira, por dentro, como funcionava a casa de Pinto da Costa, quais os métodos e as artes. E falava em Palermo... Pena que não tenha sido mais corajoso, contando o que viu. Coragem essa que não falta a Carolina Salgado, fazendo com isso saltar dos eixos o futebol português. Agora, parece ter chegado o tempo de começarmos a saber o que se passa. Agora, esse poder oculto do futebol português vai submergir, vai ser posto a nu, e vai queimar muita gente. Agressões a vereadores de Gondomar, conversas com árbitros em casa, gavetas cheias de dinheiro, colaborações secretas com a PJ do Porto, controlo das classificações do árbitros, suspeitas de associação criminosa. Ao pé das acusações que caiem sobre Pinto da Costa, Vale e Azevedo parece um aprendiz e no entanto foi parar à cadeia. Veremos se a justiça portuguesa considera mais grave uma burla do que uma associação criminosa. Mas, nos salões bem pensantes de Portugal, nas redacções dos jornais, nos cafés, o que está a dar é achincalhar Carolina Salgado. Chamar-lhe nomes, gozar com ela, é que é giro. Os portugueses são um povo muito curioso, nunca levam a sério o que é sério, preferem a reputação à substância. Por causa dessa característica antropológica, transformam tudo num espectáculo de circo, sem perceber que assim contribuem para perpétuar uma sujeira e não para a limpar. Mas, enquanto há vida, há esperança.
Em Palermo, as coisas também mudaram um dia...»

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